GERAL

Anel Rodoviário

Sentado em uma cadeira na passarela de pedestres, o aposentado Izaulino dos Santos Rocha, 84, observa do alto os motoristas apressados do Anel Rodoviário de Belo Horizonte. Por dia, cerca de 170 mil veículos circulam pela via para acessar a cidade ou seguir viagem pelo Brasil. Mas Izaulino não está de passagem naquela tarde de sexta-feira. O elevado é a “sacada” da casa onde ele mora há mais de 20 anos, às margens da rodovia.

Ali ele toma sol para minimizar o frio e relembra seus 38 anos de estrada, tempo em que trabalhou ‘puxando caminhão de boi’. Quem tira o aposentado dos pensamentos é o cabeleireiro Genival dos Santos Rocha, 35, que anda de casa em casa no aglomerado com a tesoura na mão. De repente, a passarela vira uma barbearia, onde o vento dá conta de varrer os fios de cabelo para a rodovia. Nem de longe aquele é um lugar propício e seguro para se morar ou cuidar da aparência. Mas é o local que milhares de pessoas encontraram para viver, enquanto reivindicam uma nova política habitacional na capital.

O Anel foi aberto à circulação na década de 60 com o objetivo de contornar Belo Horizonte e ligar as BRs 381 e 040. Com o crescimento urbano desordenado, se tornou acesso aos principais corredores da cidade. Hoje, além de saturada por um fluxo de veículos muito superior à sua capacidade, a rodovia também é quintal de pessoas que vivem expostas a acidentes, violência, poluição, preconceito, muitas sem outra opção de moradia.

Estima-se que ao menos 1.400 famílias vivam no local, segundo último levantamento, feito em 2012, e usado até hoje pela Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel). São cerca de 30 vilas instaladas nos 27,5 km de extensão da via.

Um endereço insalubre e estigmatizado, que não destrói a capacidade desses moradores de dar novos sentidos ao Anel. “Por mais que essas pessoas tenham seus direitos básicos negados, elas têm uma resistência e um vínculo comunitário forte para reinventar esse morar”, avalia a doutora em psicologia social pela UFMG Luana Carola Santos, responsável por um estudo sobre a vila da Paz, uma das maiores da rodovia.

Simbólico

Além de moradia, a “faixa de domínio” do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) vira jardim, horta, praça, bar, playground, igreja, campo de futebol e já foi até ‘maternidade’. Enquanto aparava os poucos fios brancos de cabelo, Izaulino contou que teve 47 filhos, cinco nascidos no Anel, sob os paletes de madeira deixados por caminhoneiros.

Genival, que coincidentemente tem o mesmo sobrenome de seu Izaulino, diz que desconfia ser um dos rebentos espalhados pelo mundo. Os dois brincam e depois se despedem como quem se conhece de longa data. “Há laços de afetividade, confraternizações e memórias que vão além do material. É o simbólico do morar”, conclui Luana.

O TEMPO

 

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